Quase 8 mil armas de uso restrito compradas por CACs na era Bolsonaro seguem sem registro na Polícia Federal

 


Falta de controle sobre arsenal preocupa especialistas, que alertam para risco de abastecimento do crime organizado; governo Lula é cobrado por lentidão na fiscalização


Quase 7.600 armas de uso restrito adquiridas por CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) entre 2018 e 2022, durante o governo Jair Bolsonaro (PL), ainda não foram devidamente cadastradas na Polícia Federal, conforme exigido por normas em vigor. O número representa 15% do total desse tipo de armamento comprado por civis no período e, segundo especialistas, indica risco real de que parte desse arsenal tenha sido desviada para o crime organizado.


Os dados constam de levantamento da Polícia Federal obtido por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre as armas não regularizadas estão pistolas, fuzis e carabinas de calibres de uso restrito, cujo porte é autorizado apenas a forças de segurança e CACs com permissão especial do Exército.


A obrigatoriedade de recadastramento foi estabelecida ainda na gestão do ex-ministro da Justiça Flávio Dino, por meio de portaria que buscou reverter o afrouxamento de regras implementado por Bolsonaro, que ampliou o acesso a armamentos de alta potência e flexibilizou os controles sobre o mercado legal de armas no país.


De acordo com os dados da PF, 939.559 armas de CACs foram recadastradas, incluindo 44.276 de uso restrito. Destas, 42.848 foram efetivamente apresentadas pelos proprietários à autoridade policial, como exige a etapa final do recadastramento. Porém, o número de armas compradas do tipo até 2022, conforme o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas do Exército, é de 50.432. Assim, 7.584 seguem com paradeiro indefinido.


Risco à segurança pública

Especialistas ouvidos pela reportagem consideram grave o número de armas não regularizadas. Para Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz, a ausência de medidas mais incisivas para localizar essas armas representa uma falha do governo federal.


— O dado de que quase 8.000 armas de calibre restrito não foram recadastradas ou não tiveram o cadastro concluído deveria ter gerado uma resposta imediata, mas até agora não houve ação concreta para localizar esses armamentos — alertou.


Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ressalta o potencial letal do arsenal desaparecido:


— Esse volume seria suficiente para armar uma brigada inteira do Exército brasileiro. Ignorar o controle rigoroso do mercado legal de armas é negligenciar uma das principais fontes de abastecimento do crime organizado — afirmou.


Falhas no sistema e entraves na fiscalização

A portaria do Ministério da Justiça prevê sanções administrativas e penais, além da apreensão das armas não recadastradas. No entanto, o governo ainda não finalizou a regulamentação que permitirá aplicar efetivamente essas punições.


Uma das propostas em discussão prevê notificação dos proprietários e prazo de 60 dias para que entreguem os armamentos à Campanha do Desarmamento ou transfiram a posse para quem atenda aos critérios legais. Passado o prazo, busca e apreensão poderia ser autorizada.


A fiscalização sobre os CACs ainda é responsabilidade do Exército, mas deverá ser transferida à Polícia Federal a partir de julho, segundo o Ministério da Justiça. O processo, no entanto, foi atrasado por cortes orçamentários e pela falta de pessoal na PF. O ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a transição não foi possível no início do ano devido à ausência de estrutura adequada.


Segundo o Ministério da Gestão, 1.392 novas vagas já foram autorizadas para a corporação, com outras mil previstas até 2026. A expectativa é que esses reforços permitam a PF assumir plenamente as atribuições de controle do armamento civil.


Sistemas sem integração

Outro obstáculo apontado por especialistas é a falta de integração entre os sistemas da Polícia Federal e do Exército, que impede o cruzamento automático de dados de registro, dificultando o monitoramento efetivo dos CACs.


— A ausência de cruzamento entre os bancos de dados compromete qualquer tentativa de fiscalização séria. Estamos falando de milhares de armas que não se sabe onde estão — afirmou Langeani.


Procurada, a Polícia Federal não respondeu aos questionamentos sobre quais medidas serão adotadas para localizar as armas em situação irregular.

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